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   CINEMA, CORPO & FILOSOFIA

      CONTRIBUIÇÕES PARA O ESTUDO DAS PERFORMANCES           NO CINEMA ARGENTINO

 

          Natacha Muriel López-Gallucci

          Programa de Pós-Graduação em Multimeios

          Instituto de Artes Universidade Estadual de Campinas.

         

RESUMO

Neste trabalho pretende-se pesquisar e refletir sobre o corpo performático do tango interveniente na evolução estilística e nos modelos de representação provenientes da cinematografia argentina. Tomando como paradigma o processo de criação do corpo gestual codificado do tango dança dentro do espaço fílmico, o estudo propõem-se a investigar, em perspectiva histórica, as dimensões axiológica e estética a que serviram essas representações nos períodos mudo, clássico, moderno e contemporâneo na Argentina. As representações fílmicas da dança constituem um locus, âmbito do intercâmbio de saberes e práticas corporais ritualizadas e espetaculares do povo, e o tango opera como uma categoria de análise estética e de transmissão de valores socioculturais que constitui um verdadeiro sistema de representação social. Esta pesquisa revelou, nas análises fílmicas e nos estudos fotográficos e coreográficos realizados, de maneira participante, o papel do tango dança na consolidação de uma linguagem cinematográfica característica, cuja dimensão tem sido sistematicamente ignorada pela historiografia; o corpus fílmico organizado neste recorte permite fundar e fundamentar, do ponto de vista imagético, uma discussão estética, mostrando a presença de operações próprias da linguagem cinematográfica, inerente a concepção coreográfica e filosofia do corpo presentes no tango dança.  Palavras-chave: Cinema. Filosofia. Corpo. Performance. Tango dança

Fragmentos fílmicos periodizados de tango dança no cinema argentino

Períodos Mudo, Clássico, Moderno e Contemporáneo

 

   MOTIVAÇÃO

          Natacha Muriel López-Gallucci

           

 

A filosofia e a dança haviam sido sempre, em nós[1], dois territórios paralelos, que, apesar do tempo e da proximidade, nunca chegavam realmente a tocar-se: um apelava sempre à linguagem verbal, girava em redor da estética especulativa e da vida acadêmica; o outro, manifestação criativa e corporal, transitava entre os espaços alternativos de formação, as práticas ritualizadas e os momentos de produção artística de traços espetaculares. Mas, no diálogo interior, nessa voz muda que acompanha o sujeito reflexivo na sua experiência formativa, ambas estavam fundidas e vibravam em inúmeras reflexões sobre o corpo e os valores implícitos que emergiam do ambiente cultural, locus tingido, em grande medida, pela filosofia implícita nas tradições rio-platenses do tango.

Em meados de julho de 2006 recebemos uma proposta da Fundação Memorial da América Latina (São Paulo) para ministrar um seminário teórico e prático sobre a história cultural do tango. O convite trazia, de maneira implícita, o crescente interesse do público brasileiro em acessar, conjuntamente à dança e à música, os valores envolvidos na cultura do tango. Em um primeiro momento, foram grandes nossa surpresa e alegria, pois imaginávamos que, no espaço de um seminário teórico-prático (a meio caminho entre o acadêmico e o criativo), poderíamos articular elementos da nossa própria formação artística e pedagógica na Escola Nacional de Danças (Rosário, Argentina) com a teoria estética contemporânea, objeto dos estudos de Filosofia na Universidade Nacional de Rosário (Argentina). A proposta era estimulante, pois naquele momento nos encontrávamos finalizando uma pesquisa doutoral em filosofia, abordando aspectos de estética contemporânea, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas.

Foi justamente na preparação desse seminário que percebemos a carência de informação pertinente, que reunisse a música, a poética e a dança e pudesse apresentar aspectos dos valores culturais e a idiossincrasia do tango na Argentina. Em função dessa carência, começamos a projetar como deveria desenvolver-se um material que complementasse a literatura existente e aproximasse o público contemporâneo dos processos artísticos detalhados e dos valores do ethos que deu nascimento ao tango. Iniciamos, assim, ainda de maneira extra-acadêmica, uma investigação, refletindo sempre acerca de qual seria o formato mais adequado para conceber tal mediação.

Intuímos que o cinema argentino poderia ocupar esse lugar, reunindo, na urdidura fílmica de experiências narrativas, ficcionais e documentárias, imagens acústicas e visuais – captadas in situ ou recriadas – da cultura popular vernácula do tango, permitindo ao público estabelecer um diálogo com as manifestações desse estilo hoje globalizado. Mas um corpus fílmico de tais características não se encontrava reunido em um único espaço para poder ser assistido diretamente: acessava-se essa informação de maneira fragmentária, através de projeções no canal público argentino, de ciclos em cineclubes e de literatura histórica e matérias especializadas.

Começamos, assim, uma longa peregrinação, à procura de filmes de diferentes períodos, vídeos caseiros, revistas de época que trouxessem à tona as representações de tango dança e outras informações históricas relativas às práticas corporais no Río de La Plata. Despontou imediatamente uma diferença entre o caudal de material existente sobre a música “ciudadana”, que se serve de uma notação padronizada mundial, cujas figuras eram estrelas no cinema ou capas de revistas de cinema, e as informações sobre práticas corporais do tango, que se apresentavam em forma de estilhaços; seus protagonistas – como bem o observou Estela dos Santos – eram grandes coreógrafos, bailarinos de reconhecimento internacional ou “maestros” de tango, mas que tinham sido relegados pela literatura e cujos ensinamentos e experiências performáticas estavam se perdendo. Talvez porque não estivessem muito acostumados a resenhar ou escrever sobre sua própria práxis e tampouco contavam com um modo de notação standart de suas criações coreográficas, como acontece com música ou sua poesia.

O material fílmico achado colocava a sucessão de cenas traçadas na luz em uma sequência cronológica que significou para nós uma forma de “escritura” do tango dança. Descortinava-se uma série imagética singular que nos manifestava sua temporalidade imanente. A dança não era apenas um objeto visual, mas um artefato socializado, convencional e codificado; e, pela nossa formação e história pessoal[2], percebemos como estavam sendo manipuladas pelo cinema essas estratégias do corpo e o valor cultural desses processos narrativos orais que acompanhavam a transmissão das técnicas.

Em 2006 realizamos uma viagem de estudos a La Havana, onde visualizamos com surpresa, na Biblioteca da Casa das Américas, um amplo acervo reunido e sistematizado sobre tango; durante o VII Congresso da Associação Internacional para os Estudos da Música Popular – Rama América Latina tivemos um amplo diálogo a partir de imagens que apresentamos, referentes ao grupo de estudos em tango criado por nós na Unicamp. Foi-nos sugerido, nesse contexto, aprofundar o trabalho, colocando os alunos do grupo em maior contato com a materialidade das imagens, que trazia o cinema argentino e bibliografia a ele relativo.

A primeira projeção com fins de pesquisa foi em 2007, nas sessões do Grupo de Trabalho “Tango & Cultura do Río de la Plata”, que então coordenávamos na Biblioteca Central da Unicamp. Apresentamos o filme Quereme asi, piantao, de Pagliere (1997), com roteiro de Eliseo Álvarez, sobre a vida e a obra de Ástor Piazzolla. O filme misturava cenas de ficção, recriando a história do ícone, com imagens de arquivo e depoimentos do próprio músico, somando, na trilha sonora, diversas performances musicais de reconhecidos bandoneonistas argentinos. O ciclo continuou com a apresentação de outros filmes, como El exílio de Gardel (SOLANAS, 1985), Luna de Avellaneda (CAMPANELLA, 2004), Tango (SAURA, 1998), Tango, un giro extraño (GARCÍA GUEVARA, 2005), entre outros de fácil acesso no Brasil.

Nesse mesmo período, na Argentina, começou a ser produzido um conjunto de documentários sobre tango, que traziam à tona o furor da formação de novas “orquestras escolas”, a renovação das técnicas de dança e abordavam a vida de muitos artistas esquecidos. Emergiam da obscuridade circuitos alternativos de exibição fílmica e espaços multiplicadores, como as “milongas” e os grupos de pesquisa; coincidentemente, também proliferou, como em outros países da América Latina, a tendência a desenvolver investimentos e políticas estatais de restauração e catalogação de filmes mudos e clássicos que, de outro modo, teriam ficado perdidos para sempre. Nessas condições nos sentíamos muito mais perto da realização de um trabalho fundamentado e iniciamos a escrita de um projeto de pesquisa de doutorado que foi aceito em 2009 pelo Departamento de Multimeios da Unicamp.

Para a escrita do projeto, cujo principal objetivo era fundar um problema, recorremos a um circuito amplo, que engloba nossos anos de formação em dança com maestros que haviam sido convocados por diretores de cinema para realizar performances e coreografia; Carlos Copes e Maria Nieves[3], Milena Plebs[4], Gustavo Naveira e Giselle Anne[5], Ana María Jaime[6], Orlando Paiva[7], Ana Maria Stekelmann[8], Melina Brufmann e Claudio Gonzalez[9], Silvio La Via e Trinidad Garbo[10] e muitos outros, com quem compartimos atividades profissionais como os coreógrafos e intérprete Roberto Herrera[11], Sol Viviano e Osmar Odone[12], Cesar Agazzi e Virginia Uva[13], Sebastián de La Vallina[14], e a pesquisa em pedagogia da dança junto aos maestros Victoria Colosio e Germán Ruiz Diaz.

Iniciada a investigação e a recopilação de filmes na Universidad del Cine em Buenos Aires e outros acervos privados e públicos, sucedeu-se uma série de entrevistas preparatórias, trajetórias de formação (produção de documentários, edição e roteiro), estudos em composição coreográfica para tango dança, assim como diversas instâncias pedagógicas e criativas multimediais, que permitiram concretizar este trabalho de pesquisa que hoje apresentamos.

A possibilidade de realizar esta investigação como segundo doutorado[15] no Departamento de Multimeios no Instituto de Artes da Unicamp, assim como um percurso artístico desenvolvido quase em paralelo, tem sido a forma que adotamos para começar a construir nossa ponte entre esses dois territórios.

Esta tese está organizada em três capítulos, anexos e bibliografia.

No primeiro capítulo, “O surgimento do tango e do cinema na Argentina”, realizaremos alguns apontamentos históricos dos debates suscitados a respeito do corpo e da dança e faremos a relação entre a chegada do cinematógrafo a Buenos Aires e os acontecimentos que o registro do tango dança suscitou na Argentina. A partir do levantamento de aspectos formais relevantes de ambos os dispositivos articulados, buscamos produzir uma reflexão sobre a incidência dessas representações na percepção e na experiência (Erfahrung[16]) dos argentinos, surgida na modernidade. No segundo capítulo, “O tango e o cinema: imbricação imagética dos dispositivos” apresentamos um estudo periodizado das representações de tango dançado nos filmes argentinos de ficção, mostrando, em série de fotogramas, aspectos importantes das principais mises-en-scène em cada período. Aspiramos a visualizar  a gestualidade que compõe as representações fílmicas de tango e sua importância na definição da linguagem corporal dos argentinos; para logo desenvolver um salto conceitual, no terceiro capítulo, “Performance e cinema”, em que, com essa bateria de elementos imagéticos, buscaremos acessar aspectos axiológicos nos filmes documentários; através dos diversos tipos de performances registradas envolvendo processos de subjetivação e traçando uma reflexão sobre o papel do corpo nos documentários argentinos contemporâneos.

Entre os anexos, trazemos a. Sobre a pesquisa empírica e b. Produtos decorrentes da pesquisa; incluindo informações sobre as entrevistas preliminares, um estudo fotográfico a respeito das células originárias do tango dança realizado para acompanhar as análises fílmicas, e a relação dos produtos pedagógicos e criativos mais importantes decorrentes desta pesquisa.

 

 

[1] Assim como um cantor explora as especificidades da voz erudita e popular no seu corpo e na história, o artista da dança, na contemporaneidade, desdobra-se nos papéis de pesquisador e de intérprete.

[2] Em um vídeo familiar, minha avó, Mercedes Jubillá, narra como aprendeu dançar tango com um brasileiro no interior da província de Santa Fe (Argentina). Durante as “Romerías Españolas”, Mercedes conheceu o famoso Negro Carol, acrobata do circo “criollo”. Esses circos eram acompanhados por conhecidas orquestras típicas de tango. A cada ano, ela encontrava o negro Carol, que dançava como um portenho, até que, em uma “Romeria” ele não voltou. Teve-se notícia de sua morte aproximadamente em 1935: Carol caiu, fazendo um truque na corda bamba. Assim, o fascínio de minha avó, até a atualidade, pela dança do tango, pela voz de Gardel e de Libertad Lamarque, vistos e ouvidos só no rádio e no cinema, intrigaram-nos sempre, pois refletia uma vivência emocional forte do povo argentino.

[3] Coreógrafos de inúmeros filmes entre eles Gardel, la historia de un ídolo, 1964; Esta es mi argentina, Fleider, 1974; Tango Bayle Nuestro, Zanada, 1988; e Funes un gran amor, De la Torre, 1993.

[4] Coreógrafa e produtora de Milena baila el tango, Peiretti, 2000 e Tango Bayle Nuestro, Zanada, 1988.

[5] Intérprete de tango no filme Tango Lesson, Potter, 1997.

[6] Professora de dança moderna na Escola Nacional de Danças de Rosario e intérprete no documentário Sexo, dignidad y muerte, 2010, Mastrángelo.

[7] Nosso maestro na cidade de Rosario e performer no filme Assassination Tango, Duvall, 2002.

[8] Coreografa da curta metragem Tango deseo, Klimosky, 2002; La puta y la ballena, Puenzo, 2003.

[9] Coreógrafos do espetáculo Episodios cifrados en Tango.

[10] Coreógrafos e colegas no Espetáculo Viaje al sentimiento, São Paulo, Brasil.

[11] Intérprete no filme Tango Bar, Zurinaga, 1987 e bailarino convidado do I° Festival de Tango FTC, que produzimos em Campinas, 2008.

[12] Participantes do filme El último Bandoenon, Saderman, 2007; colegas no espetáculo Esto es Tango, São Paulo, Brasil, 2008.

[13] Participantes do filme Tango, un giro extraño, García Guevara, 2006, bailarinos convidados do II° Festival de Tango FTC, que produzimos em Campinas, 2010.

[14] Nosso maestro na cidade de Rosario, coreógrafo do curta metragem Mariposas, Rosario, 2003 e realizador do espetáculo em que participamos, De adentro hacia afuera, Alianza Francesa, Rosario, 2011.

[15] Entre 2004 e 2008 desenvolvemos pesquisa doutoral sob a orientação da Prof. Dra. Jeanne Marie Gagnebin de Bons no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Nessa ocasião aboradamos o problema da imagem acústica em La prisonniere de Marcel Proust à luz dos estudos sobre a afasia de Sigmund Freud.

[16] Retomaremos o conceito de experiência (Erfahrung) desenvolvido por Walter Benjamin (1993, 1997) em dois artigos: “Experiência”, de 1913, e “Experiência e pobreza”, de 1933.

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